domingo, 22 de março de 2015

O cuidar que me levou ao Magistério: refletindo sobre minha leitura de mundo

A professora Rosana propôs, na primeira aula de Conteúdos e Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, um desafio que surpreendeu a todos: interpretar um texto em outro idioma, algo não tão comum na nossa vida diária. Como fiz essa leitura em casa, minha visão foi unitária, mas pude usar do meu jeito curioso de ser para resolver aquele desafio. 
Quando iniciei a leitura dessa atividade, pude perceber que se tratava de um currículo para concorrência de uma vaga de trabalho. A princípio, fui tentando linha por linha decifrar algo, mesmo não compreendendo a língua que ali estava escrita.
Na primeira linha, visualizei e entendi que fosse o endereço do destinatário, seguindo o nome para quem o currículo estava sendo enviado aos cuidados, e dali em diante analisei que o candidato estava expondo toda sua trajetória profissional.
Li e reli umas três vezes e cheguei a essa conclusão acima, percebi que se tivesse um hábito de ler muito mais constante em minha vida, compreenderia mais coisas, mesmo estando em outro idioma. Após fazer essa minha observação, usei o computador como ferramenta para matar minha curiosidade e digitei tudo já com o tradutor ao lado, e me surpreendi quando vi que minha interpretação condizia com o que estava escrito após ter verificado com a tradução.
Penso que se fosse me dado o mesmo trabalho há trinta anos, quando cursava o fundamental, me sentiria acuada, com medo e sem muito a dizer sobre o desafio a minha frente, pois na minha infância e adolescência não tive privilégios e meus trabalhos eram feitos com consultas naquelas enciclopédias que minha mãe conseguiu comprar a muito custo, em várias prestações a pagar.
O desafio dessa leitura significa para mim muito por ter hoje a oportunidade de poder ler, escrever, interpretar, analisar, observar e conseguir decifrar alguma coisa. Concluir essa tarefa me fez uma pessoa melhor, sabendo que sou capaz de algo novo na minha vida, a partir de agora nunca mais irei me sentir incapaz, quero cada vez mais me desafiar.
Após ter feito a leitura do texto “A importância do ato de ler”, de Paulo Freire, minha mente se abriu ainda mais para a atividade da “carta em alemão”, porque reviveu lembranças de minha vida, infância, sofrimentos e felicidades que só eu sei o que senti e passei.
Hoje, me vejo quase concluindo o ensino superior e, às vezes, sem acreditar que cheguei até aqui depois de tudo que passei. Quando criança, cresci em uma casa de madeira, onde o único lugar feito de tijolo era o quarto, a sala e a cozinha simples com frestas, por onde passava claridade e escuridão, quem quisesse podia até espiar que conseguiria ver nitidamente tudo lá dentro. O banheiro não existia e sim um quadrado, onde só cabia uma pessoa e um balde. O quintal onde morava era grande e tinha quatro casas, cada uma feita do seu jeito e condições que cada familiar podia, muitas árvores que me encantavam quando davam frutos deliciosos e eu podia degustá-los, sem contar também com galos, galinhas, pintinhos, patos e marrecos que me rodeavam quando eu brincava na terra. Era uma criança feliz, a caçula de três irmãos, esses mais velhos o menino 10 anos e a menina 8 anos. Essa irmã, desde essa idade, me cuidou com muito apreço. Minha mãe trabalhava e meu pai, com um trabalho mais flexível, administra esses irmãos em casa, mesmo sendo pai de coração deles, criou-os até a fase adulta.
Mesmo tendo nascido de um casal e família pobres, fui muito bem tratada e criada, sempre limpinha, bem penteada, alimentada e com toda a liberdade de brincar, minhas molecagem me deixaram algumas marcas, como sentar na beirada de um tanque no chão e não dar ouvidos ao papai quando falou: “você vai se machucar”. Instantes depois, o tanque virou do meu pé e, conclusão, dedão do pé esquerdo quebrado. Assim, fiquei até a chegada da mamãe do serviço, porque os assuntos mais cabeludos meu pai não resolvia. Em um outro momento de minha infância, uma tia que morava no mesmo quintal quis se desfazer de um colchão velho, mas antes de queimá-lo, porque naquela época era assim que se ficava livre de coisas que não se queria mais. Resolveu que a criançada poderia brincar, pular ali em cima, fiquei eufórica para me juntar aos demais, porém minha mãe disse que não era para eu ir, desobedeci e, no primeiro pulo, cortei minha perna esquerda com um vaso sanitário quebrado que ali estava escondido em meio a tanto mato. Levei bastante chinelada mesmo com a perna ensanguentada e assim fui levada por ela mesma para o Pronto Socorro que era bem próximo, ali fui atendida rápido, anestesiada e uma sutura bem feita que em quinze dias estava recuperada. Mas, enquanto me restabelecia, desfrutei de bastante mordomia, mais ainda das que já tinha. Sempre fui muito esperta, o bastante para observar o que acontecia ao redor.
Alguns fatos marcaram muito minha mente e até hoje lembro com tristeza. Meu irmão, quando se viu adolescente, quase homem, não aceitava o fato de ser criado por outro homem que escolhia trabalho. Trabalho esse que era no porto, por isso podia escolher quando queria ir. Esse meu irmão começou a tratar meu pai com indiferença, até surgirem as brigas, e eu pequena tinha que correr e chamar algum amigo ou primo para desapartar. Esse irmão parecia muito revoltado com a vida que ele crescera, mas eu era a única pessoa que ele tratava com muito amor e carinho. 
Como Paulo Freire cita que o chão de seu quintal foi sua lousa, o meu foi minha leitura de mundo, ali vi, ouvi coisas que não eram de grande valia para minha infância e outras que me serviriam para o futuro. O cuidar e a atenção que todos os meus familiares me davam, dentro do que lhes cabia, foi extremamente importante para o meu crescimento como pessoa.
Quando cheguei aos cinco anos, no Parque Infantil, como assim era chamado na minha época, era tímida, me sentia sozinha e chorava muito. Lembro que a minha sala era de cor vermelha e o nome da tia era Cláudia, era um amor, mas pouco comparecia, pois tinha grandes crises de bronquite e assim sempre tinha uma tia substituta diferente, olha que essa situação já acontecia em 1980. Nesse período ali, tive meus primeiros ensinamentos de coordenação motora, em que algo me colocava novamente entristecida, pois era canhota e eu me sentia diferente, mas superei. Também no parquinho conheci minha primeira amiga, pessoa que estimo até hoje e que também optou por ser educadora como eu. No ano seguinte, todos seriam encaminhados para uma escola da prefeitura, mais um baque: não sobrou vaga para mim.
Meu tio me deu a chance de ingressar no Colégio dos Estivadores de Santos, onde só filho de estivadores não era pagante e meu pai, nessa época, ainda não tinha adquirido essa carteira para que eu tivesse esse privilégio.
Bom, ali conheci tia Charleaux, senhora meiga, atenciosa, cariosa e dedicada ao que fazia, ensinar a ler e escrever. Era tudo organizado, mesa forrada com plástico quadriculado azul. Naquele momento, iniciava meu aprendizado de ler e escrever, um mundo novo que estava a minha frente para que eu o enfrentasse e me tornasse o que sou hoje, uma educadora em busca de mais aprendizado para que possa repassá-lo com êxito. Aprendi o BA BE BI BO BU da cartilha. O ensino era bastante rigoroso, mas com a visão de mundo de hoje, compreendo que fui ensinada a decorar o que me era passado. O meu medo de tirar nota vermelha era absurdo, não fiz uso de muita leitura paralela, ou seja, como explica Paulo Freire, a escola não fez a devida conexão com minha leitura de mundo. Isso hoje me faz muita falta, ao contrário de Paulo Freire, que conseguia fazer a leitura da palavra, do texto e do contexto. Neste período, minha irmã havia optado pelo curso de Magistério e eu sempre estava com ela, quando elaborava e confeccionava trabalhos, era também sempre usada como modelo para trabalhos, em que precisava da escrita e respostas de crianças da minha faixa etária. Assim, fui me identificando com a atenção com que se era dada à educação, pela minha irmã e sua turma.
Eis que, em 1990, ingressei no curso de Magistério, no conhecidíssimo Colégio Canadá. Os tempos já eram outros, mas dentro de mim tinha ficado a imagem de que educar, cuidar, ensinar era muito bom. Nesse período, pude aprender a ensinar, aprender a conviver com outras pessoas que nunca tinha visto, mas que tinham o mesmo ideal, como diz Madalena Freire, precisamos ter dentro da gente um pouco de artista, espectador, ouvinte, observador, usar muito do diálogo para que as informações sejam trocadas e suas ideias também aceitas.
Segui minha formação no Magistério, com êxito, porém levei oito anos para começar a pôr em prática tudo o que estava dentro de mim. Foi em fevereiro de 2000, que iniciei minhas funções de cuidar das crianças, em uma creche em Santos. Eram oitenta no total e eu e mais uma para dar banho, trocar, servir o lanche. Depois de seis meses, foi me dada a chance de ter uma sala de maternal, crianças com dois anos, que desafio! Ficaram as lembranças, mas se tivesse os registros comigo, como Madalena Freire cita hoje, seria possível eu estar levantando algumas questões que naquele tempo não tinha respostas imediatas e usava a imaginação para cumprir minhas obrigações, para com aquelas crianças e entregá-las como chegaram. Todo o dia tinha que anotar em um caderno como tinha sido o meu dia, se tinha dado conta da atividade proposta. Esses registros, no momento, foram importantes, mas não ficaram comigo, eram relatórios de uso interno na creche. Fiquei ali por quatro anos e, quando saí, era outra pessoa com propriedade no que estava fazendo e exercendo.
Segui minha caminhada, indo para o Município de Praia Grande. Cheguei confiante no meu trabalho que já vinha fazendo. Fui muito bem acolhida, as orientações já tinham suas diferenças, pois estava em outra cidade. Ali a diretora era bastante presente, coordenadora, e também uma assistente da Secretaria da Educação quinzenalmente estava lá para verificar o meu andamento. Eu gostava muito e sempre era bem elogiada, os registros também eram internos, o meu lado artista, crítico, e de refletir sobre as coisas ficaram na minha memória e não em linhas, como Madalena Freire coloca ser a melhor forma de evoluir em sua própria construção de educador. Ali exerci meus trabalhos por 8 anos. Parei, fiquei doente, após 3 anos, retornei já no município de São Vicente. Outra realidade, mas me propus enfrentar e assim o fiz durante 1 ano e 5 meses, fiz novas descobertas, com a mais marcante: um menino autista, uma deficiência que o deixava de canto e assim ele ali vivia, mesmo sem me oferecerem, peguei esse desafio para mim e nesse período o avanço dele foi notado por todos. E, quando me perguntaram, “você tem especialização em educação especial”, eu falei não. A vontade de cuidar vem de dentro, a busca do desconhecimento me instiga.
Bom, mas como tudo na vida passa, esse menino passou na minha vida e me deixou marcas que só eu sei, mas que sem orientações também não foram registradas. Vim para Santos, e agora em uma escola particular no ensino fundamental, Deus me coloca à prova mais uma vez, e eis que surge o Fernando um menino com paralisia cerebral, cadeirante, muito inteligente, mas com suas limitações motoras.
Sem experiência nenhuma, só a vontade no coração de ajudar aquele menino a conseguir alcançar a máximo que ele pudesse, mesmo que isso me deixasse na lona. E assim caminhamos durante 2 anos juntos e tenho certeza que marquei sua vida, mas ele marcou muito mais a minha, hoje somos amigos, a forma com que eu tinha que trabalhar com ele, eu mesma inventava, criava, e realizávamos tarefas que impressionavam, a dificuldade na fala que ele trazia consigo bloqueavam muitos que com eles já estavam há anos, mas, assim que nos conhecemos, não tive dúvidas, aquele menino iria fazer a diferença na minha vida.
E aqui eu cheguei, dividindo minha vida, tentando a cada dia ser melhor, e obter mais conhecimentos para que esse cuidar, esse ensinar, esse olhar possam enfrentar e derrubar barreiras.
Finalizo minhas reflexões, com a intenção de ter conectado a atividade de leitura da “carta em alemão” com minha leitura de mundo, conforme Paulo Freire, bem como exercitado o meu registro reflexivo, conforme Madalena Freire.

Gisele Aparecida Madureira (7º semestre Pedagogia PARFOR)

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