segunda-feira, 30 de março de 2015

Minha leitura do mundo: refletindo com Paulo e Madalena Freire


Na nossa primeira aula de Conteúdo e Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa II, a professora nos surpreendeu com uma atividade inusitada. Tínhamos que fazer a tradução de um texto, especificamente uma carta, mas o que não sabíamos era que esta carta estava escrita em outro idioma: alemão.
Nenhum de nós conhecia esse idioma e começamos a associar algumas palavras da carta com palavras do nosso idioma. Por ser uma atividade em grupo, cada um deu uma versão diferente da carta.
A leitura do texto foi difícil, pois não tínhamos o domínio da língua, na qual a carta foi escrita. Procuramos em dupla fazer alguma leitura do texto, e, com muita dificuldade, associamos palavras com a nossa língua portuguesa, como por exemplo: Transport =Transporte, mas não sabíamos se estava correto.
Ao fazermos essas comparações, achamos que poderia ser uma carta com alguma reclamação a uma empresa. Outros grupos também acharam que poderia ser uma carta pedindo um emprego. Isso nos fez pensar como as crianças que não têm o domínio da escrita se sentem, ao se depararem com um texto, mesmo sendo da sua língua. Sem conhecimento da escrita e habilidades de leitura, fica difícil até fazer a associação que fizemos. Por isso, para saber o que exatamente estava escrito no texto, tínhamos primeiramente que ter domínio da língua alemã.
A leitura é fundamental, pois ela é uma ferramenta de ensino e aprendizagem. Mas, para que isso ocorra, é necessário que haja sentido para o aluno. Ler é atribuir sentido ao texto. Paulo Freire, em “A importância do ato de ler”, nos explica que antes de ler a palavra o que lemos e temos à nossa disposição é o mundo, e a gente o lê, somente depois é que o interpretamos e conhecemos. É quando o autor nos mostra que a linguagem e a palavra andam juntas. Nas palavras exatas de Paulo Freire (1981): “A leitura do mundo pede a leitura da palavra”.
Muitas vezes, nos deparamos com alunos que só leem quando a escrita está associada com uma imagem. Mesmo não sabendo ler, ao ver a imagem, eles falam o nome do objeto representado pela imagem, sem saber se o que está escrito é aquilo mesmo.
Por exemplo, quando colocamos a imagem de uma banana com a palavra banana junto, a criança lê banana, quando retiramos a escrita correta e colocamos outra ela continua a dizer que é banana. Isso porque ela não tem a propriedade da leitura. Com o tempo, a criança começa a associar a palavra com a imagem, começa a perceber a sonoridade, quantidade e qualidade do que está escrito. Sei que é muito difícil para as crianças que estão iniciando na leitura a compreensão do texto. E para que gostem de ler e compreendam o que está sendo lido, o texto deve ser de fácil compreensão, prazeroso e, principalmente, fazer sentido para elas. Caso contrário, vão achar chato e perder o gosto pela leitura. No meu ponto de vista, todos os dias deveríamos ler para as crianças na fase inicial e, se possível, fazer uma atividade sobre o texto lido. Tive esta experiência de ler e fazer uma atividade sempre relacionada com o livro e isso despertou um grande interesse dos alunos pela leitura. Toda semana queriam saber qual era a próxima história.
Ao ler o texto de Paulo Freire, “A Importância do Ato de Ler”, pude ver algo que eu desconhecia ou, melhor dizendo, nunca pensei dessa forma. O autor usou no texto a expressão leitura do mundo, que é o ato de ler o mundo ao redor, sem conhecer a leitura da escrita. Paulo Freire (1981) diz “Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior [...]”, com isso ele nos mostra que temos que ensinar para as crianças palavras do seu universo infantil e não palavras do mundo adulto. Desde o momento que fazemos da leitura um hábito, ela não será mais algo que os alunos tenham medo de ler e de expressar diante da sala.
A atividade sobre a “carta em alemão” que realizamos, e, principalmente, a leitura de Paulo Freire me fizeram relembrar meus tempos de criança, que não foram fáceis.
Morava com meus avós em Minas Gerais, enquanto minha mãe trabalhava em São Paulo e só ia uma ou duas vezes no mês nos visitar. Morei com ela até os três anos, depois fomos para a casa dos meus avós. Lá minha mãe teve minha irmã Rosa, parece estranho eu e ela com o mesmo nome, mas é porque minha mãe amava rosas. Lembro de subir no pé de jabuticabas para chupá-las, pois as maiores, “olho de boi” era como as chamávamos, eram mais docinhas. Andar pelos pastos para cortar o caminho, pegar amoras, araçá.
À noite, quando íamos dormir, ficávamos ao redor do fogão à lenha ouvindo os causos da minha vó, como dizia Paulo freire, “medo das almas penadas..”. Era sobre isso que meus avós falavam. Na quaresma falavam do lobisomem, que era um homem que na lua cheia se transformava em lobo e atacava as pessoas. Certa vez na quaresma eu, minhas tias e minha irmã estávamos à beira do fogão. Enquanto minha avó cozinhava, meu avô, que era cego, pediu seu cachimbo, o fumo de rolo e seu canivete e minha avó pediu para ele contar a história de um morador da região que, segundo descobriram, virava lobisomem. No meio da história, começamos a ouvir um barulho do lado de fora da casa e, cada vez mais, o barulho aumentava e meu avô dizia que se cantássemos as músicas do carnaval ou fizéssemos malcriação o lobisomem nos pegaria. Naquele momento, começaram a arranhar a porta e todas nós começamos a gritar, desesperadas, com medo do lobisomem. Até hoje não soube o que arranhou a porta. No dia seguinte, fomos olhar a porta e ela estava toda arranhada e nem tínhamos cachorro. Bons tempos aqueles!
De acordo com Paulo Freire, posso compreender que essas experiências da minha infância tiveram grande relevância para minha formação de leitora, porque, nesses momentos, eu estava construindo minhas lembranças. E o que tem de mais prazeroso do que suas lembranças de infância? Nem todas foram boas, mas o importante é que elas fazem parte de mim, do que sou ou vou ser, dos conhecimentos que adquiri. Podia não dominar a palavra escrita, mas na leitura do meu mundo eu já as conhecia no concreto, como as jabuticabas retiradas do pé, no galho mais alto da jabuticabeira. 
Com o passar do tempo, cresci e comecei a frequentar a escola. Minha cartilha era pequena, num papel amarelado, com gravuras correspondentes às letras. Para chegar à escola, eu atravessava o pasto do vizinho que era no fundo da minha casa, onde eu colhia amoras, morrendo de medo do gado. Naquele tempo, minha escola ou grupo escolar, que era como chamávamos a escola, era de lata, pois era uma espécie de container, com uma porta e duas janelas. Quando chovia, mal se ouvia a professora. 
Foi nessa época que comecei a conhecer as palavras, as quais estavam na minha “leitura do mundo”, conforme explica Paulo Freire. Eu já as conhecia, mas só foi a partir daquele momento que fomos apresentadas convencionalmente. Algumas palavras que me foram apresentadas eram sim do meu mundo como: O BOI BABA, e ele babava mesmo, mas outras não e isso me confundia, pois eram mais difíceis de assimilar. Será que é por que não faziam parte do meu mundo? Segundo Paulo Freire, a alfabetização precisa se dar pela “palavramundo”, então acredito que sim.
Eu não gostava de ir para escola, Talvez porque quisesse ficar mais em casa, subindo nas árvores, queria ir morar com minha mãe ou porque não conseguia fazer as lições. Paulo Freire tem razão ao ressaltar que as lições na escola precisam ser significativas. Apanhei muito da minha tia. Ia apanhando até a escola, ficava de castigo, por não querer fazer a lição. Naquele momento, eu só queria que minha mãe viesse me buscar e me levasse embora. E, lendo a carta em alemão, me veio na lembrança esse momento.
Acho que senti medo e, ao mesmo tempo, me coloquei no lugar dos meus alunos que devem estar sentindo esse medo: o medo do desconhecido. Entretanto, os livros didáticos também não estão ajudando o aluno ou o professor que não tem um diálogo com seu aluno para fazer um diagnóstico. Segundo Paulo Freire, uma das tarefas do educador para com o educando hoje é o diálogo. Mostrar ao aluno seu avanço, para que ele não desanime.
Lembrei-me de um aluno do quarto ano que fazia reforço comigo que, ao dar uma atividade e pedir que levasse para casa e me trouxesse na próxima aula, ele implorou para que pudesse terminar na escola, só faltou ajoelhar. Então, dispensei os outro, pedi que ele esperasse e perguntei porque ele não queria levar a atividade. Foi aí que ele me disse que seu pai o chamava de burro, idiota e que se pudesse não teria ele como filho. Recolhi a atividade dele e lhe disse que, no nosso próximo encontro, o ajudaria e passei para a direção da escola o fato. Esse aluno foi retido, pois não havia condição nenhuma de ele passar e me pergunto se é o pai que lhe bloqueia para aprender. O pior de tudo é que ele fala que quando crescer quer ser como pai, que sempre diz "nunca terminei os estudos e sou mecânico, funileiro e não precisei de nada disso". E eu me pergunto novamente: o que posso fazer nessa e em inúmeras situações?
Paulo Freire nos relata que foi mais ajudado do que desajudado pelos pais e essa rica experiência de compreensão de seu mundo fez com que ele iniciasse a leitura das palavras, com isso, ele nos mostra como é importante os pais na vida escolar dos filhos, ajudando e o estimulando, não criticando. 
Minhas lembranças da escola e da infância me acompanham até hoje. Quando lembro que, para fazer um mapa, tinha que usar o papel de pão da padaria, pois meus avós não tinham dinheiro para o caderno de desenho, me dá um nó na garganta. No começo, era difícil fazer a lição à luz de lamparina, mas depois de um ano, já tínhamos luz elétrica, mesmo com algumas dificuldades, sabia que era importante saber ler e escrever. Mesmo não tendo minha mãe ao lado, minha tia, do seu grosso modo, me mandava para escola para que eu aprendesse, e hoje vejo a importância do ato de ler.
Tivemos que nos mudar. Minha tia Maria morava aqui em São Vicente, viemos morar com ela, alugamos um barraco. Morávamos eu, minha mãe, minha irmã, e minhas tias com a tia Maria e começamos uma nova história. 
Aqui era tudo diferente. Voltei a estudar, mas fui para o primeiro ano, não sei porque. Minha mãe trabalhava, eu tomava conta da minha irmã, que quando começou a estudar, era eu que lhe ensinava as lições. Lembro-me de fazer as famílias silábica em cartolina e brincar de formar palavras, tomava a leitura, acho que eu já estava no caminho para a Pedagogia. Hoje, ela é formada em Ciências Contábeis, é uma excelente professora de reforço da aula em casa para minhas sobrinhas, que são feras como a mãe. Hoje, até alfabetização para adulto em casa ela faz.
Se trabalhássemos em cima do cotidiano das crianças, em vez de seguir os livros didáticos, iniciando desses conhecimentos do dia a dia com eles, talvez fosse mais fácil para o entendimento do conteúdo. Por isso, Paulo Freire nos ensina uma grande lição: “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”.
Retomando a atividade de leitura da carta em alemão, que gerou esta produção escrita, compreendo que o gênero textual escolhido pela professora foi uma carta, que pode ser formal ou informal dependendo da pessoa ser culta ou uma pessoa amiga. A carta começa com uma saudação ao destinatário, depois o corpo da carta, e por último o desfecho. Com essa escolha, a professora teve a intencionalidade pedagógica de facilitar nossa “leitura”, já que carta é um gênero que sabemos reconhecer com facilidade.
A segunda atividade proposta foi a leitura do texto “A importância do ato de ler”, de Paulo Freire, que nos fez refletir sobre o que é a leitura e como estamos ensinando a leitura para nossos alunos. Será que respeitamos seu aprendizado, sabemos o que eles sabem ou ignoramos tudo e introduzimos a leitura sem respeitar seus saberes?
A meu ver, a professora Rosana quis nos colocar no lugar de nossos alunos para que nos sentíssemos como eles, e também não ignorar o resultado dessa introdução, como ela fez, nos ajudou a refletir, guiando-nos na reflexão do que fazemos? Como fazemos? Com nossos alunos, seguimos esse caminho de pensar, refletir e guiá-los até o sucesso. Percebo, então, que tenho muito a aprender com meus alunos e comigo mesma.
Nesse sentido, Madalena Freire nos faz compreender que o professor precisa observar, registrar e refletir, porque, fazendo esse percurso, é que poderemos refletir de como está sendo nossa prática na sala de aula.
Quando registramos sobre o nosso fazer pedagógico, nos questionamos e pensamos de como isso está sendo praticado. Se o que fazemos tem um significado para nossos alunos, ou melhor dizendo, se eles estão aprendendo ou não. As respostas dessas questões só teremos quando avaliarmos nossos planejamentos, refletirmos e aprendermos com os resultados.
Foi mais ou menos o que ocorreu nesta atividade, desde a primeira até a terceira tarefa de escrita e revisão de texto, em que tive que refletir sobre o que li, sobre minhas memórias e fazer uma ponte entre os textos e minhas lembranças de aprendizagem. Tudo isso só foi possível com a leituras dos textos de Paulo Freire e de Madalena Freire.

Rosa Maria de Deus Jorge
(7º semestre Pedagogia PARFOR)

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