terça-feira, 8 de setembro de 2015

Pode haver ensino sem aprendizagem?


Diante do cenário desvelado por inúmeros pesquisadores da área de formação de professores, a questão posta apresenta-se quase como um silogismo, ou seja, duas premissas demonstram interdependência, apontando para uma dedução irrefutável. A premissa maior seria: Ensinar deve resultar em aprendizagem. A segunda premissa: A aprendizagem deve resultar do ensino. Logo, não existe ensino sem aprendizagem. Considerando esta hipótese, podemos examinar o ato didático sob inúmeras perspectivas.
Nóvoa (1999) expõe com clareza algumas dessas perspectivas que influenciaram e influenciam o ato didático (contexto Portugal-Brasil). No ato didático, representado tradicionalmente pela tríade professor-aluno-saber (Jean Houssaye), o aluno foi, por muito tempo, considerado como um elemento passivo, receptor de conhecimento, e o professor era o transmissor desse conhecimento. Ou seja, a “educação bancária” que foi enfaticamente repudiada por Paulo Freire. Atualmente, é possível também constatar que o professor pode ocupar um lugar passivo, diante de correntes que defendem a tecnologização do ensino. Frente a tais concepções, inferimos que existe a pretensão de ensinar, mas não há garantias de aprendizagem.
Nóvoa (1999, p. 8) explica esse triângulo também na perspectiva política “professores-Estado-pais/comunidades”. Até início da Idade Moderna, as práticas educativas institucionalizadas resultavam da transação direta entre professores e pais/comunidades. A partir do século XVIII, o Estado assumiu a responsabilidade pela educação, concedeu aos professores uma posição privilegiada e afastou os pais/comunidades das esferas de decisões sobre a educação. As reformas educacionais dos anos 1980 voltaram a reconhecer a importância dos pais/comunidades nas decisões educativas. No entanto, a onda neoliberal de privatização do ensino, a partir dos anos 1990, e fortemente presente hoje, trouxe a concepção de educação ao “serviço de clientes” (NÓVOA, 1999, p. 9); a política de responsabilização dos professores pelo fracasso escolar, dos testes para avaliação dos resultados do ensino/aprendizagem, da meritocracia (com bônus aos melhores professores), da privatização, por meio de bolsas de estudos concedidas pelo Estado, beneficiando escolas/universidades particulares (FREITAS, 2012; ZEICHNER, 2013); impactos negativos das orientações do Banco Mundial, em programas de redução da pobreza por meio da educação, sobre os currículos escolares e, consequentemente, na qualidade do ensino (LIBÂNEO, 2013). Todas essas influências condicionam o ato didático e nos levam a reconhecer que a importância da participação dos pais/comunidades na educação é inquestionável, no entanto, é inaceitável a gestão do ensino sob a ótica empresarial. Questionamos, então, se, nessas circunstâncias, os professores ainda têm papel relevante, a fim de que o ensino resulte em aprendizagem verdadeira.
Nóvoa (1999, p. 9) avalia ainda esse triângulo na perspectiva do conhecimento: saber da experiência (professores); saber da pedagogia (especialistas em ciências da educação); saber das disciplinas (especialistas dos diferentes domínios do conhecimento). Identifica que, dependendo dos períodos educacionais mais ou menos inovadores, esses vértices assumem relevâncias diferentes. Ora valoriza-se a ligação dos professores aos especialistas pedagógicos; ora busca-se juntar o saber da experiência ao saber das disciplinas e, atualmente, o saber científico tende a ser valorizado em detrimento do saber dos professores. Sobre os saberes docentes, Pimenta (2012) defende que, na formação de professores, os saberes pedagógicos sejam reinventados a partir da prática social de ensinar. Argumenta a autora que: “Esse entendimento aponta para uma superação da tradicional fragmentação dos saberes da docência (saberes da experiência, saberes científicos, saberes pedagógicos) apontada por Houssaye (1995, p. 81)”. Propõe, então, que a formação inicial considere como referência a experiência dos formandos, de modo que o futuro profissional possa ressignifiar essa experiência por meio da reflexão. Considera que a “tendência reflexiva pode se configurar como uma política de valorização do desenvolvimento pessoal-profissional dos professores e das instituições escolares” (PIMENTA, 2012, p. 89). Nessa perspectiva, reconhece a importância do saber ensinar, bem como a muldimensionalidade do ato didático (PIMENTA; FUSARI; FRANCO, 2014).
Retomando a questão proposta para este texto, acredito que Freire (1987, 1997, 2005) muito contribui para a ressignificação do ato didático, à medida que incorpora elementos transformadores da relação ensino-aprendizagem, tais como conscientização, cultura, a elevação do educando à condição de sujeito de seu aprendizado. Daí a máxima: "Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo" (FREIRE, 1987, p. 79).
Para Freire (1987, 1997, 2005), o homem é, em sua essência, um ser epistemologicamente curioso, conscientemente inacabado e necessariamente conectivo. E, para o pleno desenvolvimento humano, a educação precisa realizar sua verdadeira missão: a humanização do homem. A educação constitui-se, portanto, em um processo de conscientização, no sentido de criticização das relações consciência-mundo, em que educadores e educandos têm papéis importantes a cumprir:
"Dessa forma, a educação se constitui como verdadeiro quefazer humano. Educadores-educandos e educandos-educadores, mediatizados pelo mundo, exercem sobre ele uma reflexão cada vez mais crítica, inseparável de uma ação também cada vez mais crítica. Identificados nessa reflexão-ação e nessa ação-reflexão sobre o mundo mediatizador, tornam-se ambos – autenticamente – seres da praxis". (FREIRE, 1997, p. 17)
A concepção humanista freireana de educação rejeita qualquer possibilidade de manipulação do educando, afasta-se totalmente da “educação bancária”. Na superação dos obstáculos à humanização, a educação se faz conectiva, comunicativa, dialógica: “E, se é diálogo, as relações entre seus pólos já não podem ser as de contrários antagônicos, mas de pólos que conciliam” (FREIRE, 1997, p. 15).
Mediante essa concepção humanista e libertadora de educação, o homem, assumindo-se como um ser histórico, ao tomar consciência de seu inacabamento, reconhece que é “o ser da praxis ou um ser que é praxis” (FREIRE, 1997, p. 15), com o poder de emancipar-se e transformar o mundo. Assim, a educação permite que o homem se conecte com o mundo e com o outro, estimula sua criatividade, sua inquietude epistemológica, respeita sua vocação ontológica de ser mais, “reconhece que o homem se faz homem na medida em que, no processo de sua hominização até sua humanização, é capaz de admirar o mundo. É capaz de, desprendendo-se dele, conservar-se nele e com ele; e, objetivando-o, transformá-lo” (FREIRE, 1997, p. 15). 
Nesse sentido, o papel didático do professor foi sempre ressaltado por Freire. Ainda hoje, trabalhar nessa concepção freireana, implica que o professor esteja disposto a correr riscos, tais como aprender a descentralizar suas ações, a ouvir, a dar voz ao educando, a libertar-se do autoritarismo, a deixar que os temas geradores do diálogo surjam do grupo, e, assim, esteja preparado para criar e recriar contextos para que o diálogo aconteça. Trata-se de um aprendizado permanente, no processo de ação-reflexão-ação que tal postura exige. Para Freire (2005), o professor também é um aprendiz e precisa aprender que ensinar exige criar condições para uma convivência afetuosa e respeitosa com os educandos, a adotar uma postura aberta e curiosa, diante da consciência de que não sabe tudo e há sempre um universo a ser descoberto. 
O professor que exercita a pedagogia da autonomia (FREIRE, 2005) precisa aprender a provocar os estudantes a se assumirem como sujeitos na construção de conhecimento. Para tanto, o professor não deve abrir mão de sua competência técnica e científica, tampouco do rigor em seu trabalho, porque esses aspectos não são incompatíveis com a amorosidade necessária à pedagogia, mas precisa aprender que não é educativa uma relação em que o educando sente medo do professor. Assim, é preciso exercitar uma vigilância constante contra as práticas de desumanização nas relações educativas, superando concepções que defendem que decorar é melhor do que compreender, adaptar-se é melhor do que questionar, calar-se é melhor do que dialogar.
Tomando por base a concepção de educação-práxis freireana, e em conformidade com os autores estudados, podemos afirmar com segurança que não existe ensino sem aprendizagem, o contrário não é educação, mas pura hipocrisia. Por fim, todas as tentativas de transformar a educação em produto de consumo serão frustradas e só contribuirão para a desumanização da educação.

Referências bibliográficas:

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

_______. Papel da educação na humanização. Revista da FAEEBA, Salvador, n. 7, p. 9-17, jan./jun., 1997.
_______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

FREITAS, L. C.. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. In Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, abr.-jun.2012 http://www.cedes.unicamp.br

LIBÂNEO, J.C. Internacionalização das políticas educacionais e repercussões no funcionamento curricular e pedagógico das escolas. In. Libâneo, Suanno & Limonta. Qualidade da Escola Pública – políticas educacionais, didática e formação de professores. Cap. 2. Goiânia. CEPED Publ. 2013. p. 47 – 72.

NÓVOA, António. Apresentação da obra. In: NÓVOA, António (org.). Profissão professor. 2. ed. v. 3. Portugal: Porto Editora, 1999.

PIMENTA, S. G. Formação de professores: identidade e saberes da docência. In: Pimenta (org.) Saberes pedagógicos e atividade docente. S.P. 2012, 8ª. Ed. p. 15 – 38.

PIMENTA, Selma Garrido; FUSARI, José Cerchi; FRANCO, Maria Amélia Santoro. Por uma Didática Multidimensional em diálogo com as Didáticas das Disciplinas: tensões e possibilidades. XVII ENDIPE, Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. Fortaleza, 2014.

ZEICHNER, K. Políticas de formação de professores nos Estados Unidos - Como e por que elas afetam vários países no mundo. Belo Horizonte. Ed. Autêntica. 2013. cap. 2. “A influência do setor privado sobre as políticas públicas de formação de professores nos Estados Unidos”. P. 51 a 98.

Rosana Pontes

2 comentários:

  1. Educadores e Educandos, vivências na medida que se interpenetram, possibilitam garimpar tesouros de valor inestimável, pois nesta troca, quem ganha, são ambos.

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